Conectando o gênio literário brasileiro com os dilemas amorosos da era digital
Quando você desliza o dedo na tela do smartphone procurando por um match no Tinder, provavelmente não imagina que está reproduzindo comportamentos que Machado de Assis já havia descrito com precisão cirúrgica no século XIX. O “Bruxo do Cosme Velho”, como ficou conhecido o maior escritor brasileiro, demonstrou uma capacidade quase profética de compreender a natureza humana e os mecanismos dos relacionamentos que permanecem surpreendentemente atuais.
A Superficialidade das Primeiras Impressões
Em “Dom Casmurro” (1899), Machado retrata como Bentinho constrói uma imagem idealizada de Capitu baseada em impressões superficiais e projeções pessoais. Esse fenômeno é praticamente idêntico ao que acontece nos aplicativos de relacionamento modernos, onde uma foto e algumas palavras determinam se há interesse mútuo.
Assim como os usuários do Tinder fazem julgamentos instantâneos baseados em aparência e breves descrições, Bentinho se apaixona por uma versão romantizada de Capitu que existe mais em sua mente do que na realidade. A diferença é que, no século XIX, essa idealização acontecia ao longo de conversas no quintal; hoje, ela ocorre em segundos, através de uma tela.
O Jogo da Sedução Digital nos Salões do Século XIX
Os personagens machadianos dominavam a arte da sedução indireta, utilizando olhares, meias-palavras e gestos calculados – uma versão analógica do que hoje chamamos de “jogar charme” nas redes sociais. Em “A Cartomante” (1884), Rita e Camilo desenvolvem um romance através de códigos sutis e encontros aparentemente casuais, comportamento que espelha perfeitamente as estratégias modernas de conquista digital.
Machado compreendia que o interesse romântico muitas vezes se intensifica pela incerteza e pelo jogo de aproximação e distanciamento. Seus personagens praticavam o que hoje conhecemos como “ghosting” e “breadcrumbing” – términos que ainda nem existiam, mas cujos conceitos o autor já explorava magistralmente em suas narrativas.
Relacionamentos Líquidos Antes de Bauman
O sociólogo Zygmunt Bauman cunhou o termo “amor líquido” para descrever relacionamentos modernos caracterizados pela fluidez, instabilidade e facilidade de descarte. Porém, Machado de Assis já retratava essa liquidez afetiva 150 anos antes.
Em “O Alienista” (1882), vemos como as relações se transformam rapidamente baseadas em interesses pessoais. Em “Quincas Borba” (1891), acompanhamos personagens que mudam de afeto com a mesma facilidade com que trocamos de perfil em um aplicativo de encontros. A facilidade para iniciar e terminar relacionamentos, característica marcante da era digital, já estava presente na obra machadiana.
A Ansiedade dos Relacionamentos Não-Definidos
Muito antes do termo “ficada” entrar no vocabulário brasileiro, Machado já explorava relacionamentos ambíguos e indefinidos. Seus personagens viviam constantemente na incerteza sobre seus status afetivos, questionando-se sobre os verdadeiros sentimentos do outro – exatamente como acontece nos relacionamentos modernos mediados por tecnologia.
Helena, em “Helena” (1876), navega por um relacionamento cheio de ambiguidades e sinais contraditórios. Essa indefinição emocional é praticamente idêntica ao que experimentam milhões de pessoas hoje ao tentar decifrar se aquele “visto” sem resposta significa desinteresse ou apenas distração.
O Ciúme na Era da Transparência Ilusória
Em “Dom Casmurro”, o ciúme obsessivo de Bentinho nasce da interpretação de sinais e da desconfiança constante – sentimentos amplificados exponencialmente pelas redes sociais atuais. Se Bentinho enlouquecia com os olhares que Capitu dirigia a outros homens, imagine se ele tivesse acesso ao Instagram dela.
Machado antecipou como a visibilidade das interações sociais poderia alimentar inseguranças e ciúmes. Seus personagens já sofriam com a transparência ilusória dos relacionamentos, onde tudo parece estar à vista, mas as verdadeiras intenções permanecem ocultas.
Lições Machadianas para o Amor Digital
A obra de Machado de Assis oferece insights valiosos para quem navega pelos relacionamentos modernos:
Desconfiança da superficialidade: Assim como seus personagens descobriam que as primeiras impressões podem enganar, devemos questionar os julgamentos baseados apenas em perfis digitais.
Comunicação clara: Os mal-entendidos que destroem relacionamentos machadianos poderiam ser evitados com diálogo franco – lição especialmente relevante em tempos de comunicação digital ambígua.
Autoconhecimento emocional: Personagens como Bentinho sofrem por não compreenderem seus próprios sentimentos e motivações, problema que persiste na era dos relacionamentos instantâneos.
Conclusão: O Espelho Atemporal da Natureza Humana
Machado de Assis não previu o Tinder, mas compreendeu profundamente os mecanismos psicológicos que regem os relacionamentos humanos. Sua obra revela que, independentemente da época ou tecnologia, continuamos lidando com os mesmos dilemas fundamentais: insegurança, idealização, ciúme, desejo de conexão e medo da vulnerabilidade.
Ao reconhecermos esses padrões atemporais, podemos navegar pelos relacionamentos modernos com maior sabedoria, lembrando que por trás de cada perfil digital existe um ser humano complexo, repleto das mesmas contradições e necessidades emocionais que Machado retratou com tanta maestria há mais de um século.
Ler Machado de Assis hoje é como ter acesso a um manual atemporal de relacionamentos humanos – um GPS emocional que permanece relevante em qualquer época.
